Dicionário de libras vai incluir sinais regionaisPublicação com quase 12 mil verbetes terá dois mil sinais só para palavras e expressões que variam de estado para estado
Antes da publicação do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngüe da Língua de Sinais Brasileira (Libras), em 2001, pela Edusp e apoiada pela Feneis, não havia registro oficial da linguagem gestual ensinada a surdos no Brasil. Os materiais existentes estavam espalhados pelo país em apostilas produzidas por associações de apoio ao deficiente auditivo. Uma realidade bem diferente da de outros países, como os Estados Unidos, onde há algum tempo já existem dicionários do gênero.
Seis anos depois, e com a menção honrosa na categoria Educação e Psicologia do Prêmio Jabuti conquistada em 2002, os autores do trabalho, os psicólogos Fernando Capovilla e Walkiria Duarte Raphael, preparam a segunda edição do dicionário. A previsão de lançamento é para o começo de 2008. Mais dois mil verbetes de sete estados serão incorporados ao catatau que já havia reunido 9,5 mil sinais, divididos em dois volumes. Será inserida a soletração do verbete, além da indicação dos lugares onde aquele sinal é usado.
No início da pesquisa, os autores se reuniram com um grupo de 14 surdos da Feneis-SP, que passaram cada sinal e seu significado. A meta nessa segunda etapa é "aumentar o vocabulário em português e o léxico em sinais", como explica Walkiria Raphael. Confira trecho de entrevista com a estudiosa:
Língua Portuguesa - Quais as dificuldades para montar o dicionário?
Walkiria Raphael - O surdo não se baseia nos verbetes escritos, mas no conceito, o contexto. É muito comum quando um ouvinte pede a um surdo soletrar uma palavra, como "essencial", e ele perguntar o que é. Depois de entender o contexto, aí, sim, ele faz o sinal referente. Outros surdos podem empregar um sinal diferente para "essencial", mas que contenha o mesmo sentido. Além do regionalismo nos estados, em São Paulo há grupos de jovens que criam seus próprios sinais, como no resto do país, aliás. Não dá para abarcar todos os sinais. Outra dificuldade é que não há uma correspondência tão direta entre o sinal e a palavra. Nós tivemos muito cuidado para fazer essa tradução.
Há sinais que já caíram em desuso?
Sim. Do primeiro ao segundo dicionário, já notamos isso. Mas a gente resolveu manter. É como no português: ainda encontramos termos que não existem mais, mas estão lá. O próprio sinal de Libras já mudou. Ainda assim, o outro sinal não deixou de ser usado. Como há pessoas que só conhecem as versões antigas das palavras, preferimos não eliminar esses termos.
As gírias surdasPor Sueli Fernandes
A aluna Paola Ingles Gomes sinaliza gíria que só existe na Libras: termo pode indicar mau humor, surpresa ou até constrangimento
As gírias são a parte mais interessante do discurso em Libras. É justamente nele que se manifesta o universo metafórico da língua, no qual os sinais são "manipulados" de forma a seduzir, enganar, disfarçar, determinar... Testemunhamos o riquíssimo universo da polissemia e polifonia da língua da forma mais rica e diversa, em um contínuo de relações e situações determinadas pelo contexto, pelas expectativas dos interlocutores.
Existem muitos exemplos corriqueiros, bastante conhecidos nas línguas faladas, em que se usam gírias para se referir a garotas ou rapazes bonitos: "gato", "gostosa", "de cair o queixo"; ou quando precisamos informar necessidades fisiológicas como: "ir ao banheiro", "fazer xixi", "apertado" etc. Sejam faladas ou sinalizadas, as gírias são semanticamente bastante semelhantes nesses casos.
O que mais fascina na Libras são os artifícios usados pelos surdos para escapar dos olhos dos demais membros do grupo, em momentos em que necessitam endereçar mensagens subliminares, ou secretas, a algum interlocutor. Pela visualidade que é inerente à sinalização, inúmeros sinais "discretos" são criados, reduzindo-se o espaço da sinalização ou o ponto de articulação de modo a não deixar pistas aos bisbilhoteiros.
Por exemplo, se em uma roda de adolescentes surgem temas tabus como sexo ou masturbação, é comum que eles modifiquem os sinais usados convencionalmente. Da mesma forma, se uma menina quer confidenciar a outra que vai menstruar e há meninos por perto, ela muda a forma de sinalizar, usando um sinal "disfarçado". Quando se quer falar de alguém que está presente, usam-se mecanismos conversacionais de indicação disfarçada ou relações espaciais em que se estabelece uma localização neutra no espaço para o "dito cujo", mesmo que ele esteja presente, passando-se a enunciar indicando aquele ponto no espaço, sem que ninguém saiba de quem, exatamente, se fala.
São fartos, também, os exemplos de gírias que têm como sentido "tô nem aí com você", "qual é a dele?", "você me sacaneou", "tá me enrolando", "fiquei com o rabo entre as pernas", e assim por diante, que nada têm a ver com os sinais convencionais. Alguns são até modificados para a adequação discursiva.
Outros sinais são "intraduzíveis" isoladamente, pois uma mesma forma pode indicar inúmeros sentidos a depender do contexto. Um exemplo é o sinal em que a configuração de mão com o dedo médio colocado no topo da cabeça, acompanhado de uma expressão facial característica (mau humor, surpresa), pode significar "tô na minha", "que mico", "tô boiando" e assim por diante.
Enfim, a riqueza da Libras repousa justamente nesses elementos que chamaríamos extralingüísticos nas línguas faladas, mas que constituem a estrutura gramatical, semântica e discursiva da língua de sinais: movimentos de sobrancelhas, jogo de olhares, menear de ombros e de cabeça, "balanço" ao sinalizar, leveza ou ênfase no movimento, duração do olhar ou do movimento no ar, maior ou menor amplitude do espaço de sinalização. Ou seja, um universo quase desconhecido para aqueles que ainda não experimentaram constituir sentidos com palavras-imagens.
Antes da publicação do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngüe da Língua de Sinais Brasileira (Libras), em 2001, pela Edusp e apoiada pela Feneis, não havia registro oficial da linguagem gestual ensinada a surdos no Brasil. Os materiais existentes estavam espalhados pelo país em apostilas produzidas por associações de apoio ao deficiente auditivo. Uma realidade bem diferente da de outros países, como os Estados Unidos, onde há algum tempo já existem dicionários do gênero.
Seis anos depois, e com a menção honrosa na categoria Educação e Psicologia do Prêmio Jabuti conquistada em 2002, os autores do trabalho, os psicólogos Fernando Capovilla e Walkiria Duarte Raphael, preparam a segunda edição do dicionário. A previsão de lançamento é para o começo de 2008. Mais dois mil verbetes de sete estados serão incorporados ao catatau que já havia reunido 9,5 mil sinais, divididos em dois volumes. Será inserida a soletração do verbete, além da indicação dos lugares onde aquele sinal é usado.
No início da pesquisa, os autores se reuniram com um grupo de 14 surdos da Feneis-SP, que passaram cada sinal e seu significado. A meta nessa segunda etapa é "aumentar o vocabulário em português e o léxico em sinais", como explica Walkiria Raphael. Confira trecho de entrevista com a estudiosa:
Língua Portuguesa - Quais as dificuldades para montar o dicionário?
Walkiria Raphael - O surdo não se baseia nos verbetes escritos, mas no conceito, o contexto. É muito comum quando um ouvinte pede a um surdo soletrar uma palavra, como "essencial", e ele perguntar o que é. Depois de entender o contexto, aí, sim, ele faz o sinal referente. Outros surdos podem empregar um sinal diferente para "essencial", mas que contenha o mesmo sentido. Além do regionalismo nos estados, em São Paulo há grupos de jovens que criam seus próprios sinais, como no resto do país, aliás. Não dá para abarcar todos os sinais. Outra dificuldade é que não há uma correspondência tão direta entre o sinal e a palavra. Nós tivemos muito cuidado para fazer essa tradução.
Há sinais que já caíram em desuso?
Sim. Do primeiro ao segundo dicionário, já notamos isso. Mas a gente resolveu manter. É como no português: ainda encontramos termos que não existem mais, mas estão lá. O próprio sinal de Libras já mudou. Ainda assim, o outro sinal não deixou de ser usado. Como há pessoas que só conhecem as versões antigas das palavras, preferimos não eliminar esses termos.
As gírias surdasPor Sueli Fernandes
A aluna Paola Ingles Gomes sinaliza gíria que só existe na Libras: termo pode indicar mau humor, surpresa ou até constrangimento
As gírias são a parte mais interessante do discurso em Libras. É justamente nele que se manifesta o universo metafórico da língua, no qual os sinais são "manipulados" de forma a seduzir, enganar, disfarçar, determinar... Testemunhamos o riquíssimo universo da polissemia e polifonia da língua da forma mais rica e diversa, em um contínuo de relações e situações determinadas pelo contexto, pelas expectativas dos interlocutores.
Existem muitos exemplos corriqueiros, bastante conhecidos nas línguas faladas, em que se usam gírias para se referir a garotas ou rapazes bonitos: "gato", "gostosa", "de cair o queixo"; ou quando precisamos informar necessidades fisiológicas como: "ir ao banheiro", "fazer xixi", "apertado" etc. Sejam faladas ou sinalizadas, as gírias são semanticamente bastante semelhantes nesses casos.
O que mais fascina na Libras são os artifícios usados pelos surdos para escapar dos olhos dos demais membros do grupo, em momentos em que necessitam endereçar mensagens subliminares, ou secretas, a algum interlocutor. Pela visualidade que é inerente à sinalização, inúmeros sinais "discretos" são criados, reduzindo-se o espaço da sinalização ou o ponto de articulação de modo a não deixar pistas aos bisbilhoteiros.
Por exemplo, se em uma roda de adolescentes surgem temas tabus como sexo ou masturbação, é comum que eles modifiquem os sinais usados convencionalmente. Da mesma forma, se uma menina quer confidenciar a outra que vai menstruar e há meninos por perto, ela muda a forma de sinalizar, usando um sinal "disfarçado". Quando se quer falar de alguém que está presente, usam-se mecanismos conversacionais de indicação disfarçada ou relações espaciais em que se estabelece uma localização neutra no espaço para o "dito cujo", mesmo que ele esteja presente, passando-se a enunciar indicando aquele ponto no espaço, sem que ninguém saiba de quem, exatamente, se fala.
São fartos, também, os exemplos de gírias que têm como sentido "tô nem aí com você", "qual é a dele?", "você me sacaneou", "tá me enrolando", "fiquei com o rabo entre as pernas", e assim por diante, que nada têm a ver com os sinais convencionais. Alguns são até modificados para a adequação discursiva.
Outros sinais são "intraduzíveis" isoladamente, pois uma mesma forma pode indicar inúmeros sentidos a depender do contexto. Um exemplo é o sinal em que a configuração de mão com o dedo médio colocado no topo da cabeça, acompanhado de uma expressão facial característica (mau humor, surpresa), pode significar "tô na minha", "que mico", "tô boiando" e assim por diante.
Enfim, a riqueza da Libras repousa justamente nesses elementos que chamaríamos extralingüísticos nas línguas faladas, mas que constituem a estrutura gramatical, semântica e discursiva da língua de sinais: movimentos de sobrancelhas, jogo de olhares, menear de ombros e de cabeça, "balanço" ao sinalizar, leveza ou ênfase no movimento, duração do olhar ou do movimento no ar, maior ou menor amplitude do espaço de sinalização. Ou seja, um universo quase desconhecido para aqueles que ainda não experimentaram constituir sentidos com palavras-imagens.
Sueli Fernandes é lingüista, assessora técnico-pedagógica do Departamento de Educação Especial da Secretaria de Estado da Educação do Paraná e colaboradora do projeto Libras é Legal.
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